De Nolan à Labatut: O Mito de Pandora Modernizado
"mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando,
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.
Sozinha, ali, a Expectação em indestrutível morada
abaixo das bordas restou e para fora não
voou, pois antes repôs ela a tampa no jarro,
por desígnio de Zeus porta-égide, o agrega-nuvens.
Mas outros mil pesares erram entre os homens;
plena de males, a terra, pleno, o mar;
doença aos homens, de dia e de noite;
vão e vem espontâneas, levando males aos mortais,
em silêncio, pois o tramante Zeus a voz lhes tirou."
- Hesiodo, Mito de Prometeu e Pandora, Os Trabalhos e os
Dias.
O mito de Pandora que versa sobre todos os males do mundo liberados após a abertura de uma arca, ecoa na mitologia judaica quando Eva come o fruto proibido e comete o Pecado Capital. Antes de Pandora, Prometeu já havia sido punido por roubar o fogo dos deuses e cedê-lo aos humanos. Indo mais atrás no tempo, a maioria dos mitos sobre a origem do fogo que conhecemos, trazem em seu cerne um "crime" cometido, em seu ensaio A Origem da Espécie, Alberto Mussa discute que esse crime é um insulto contra a própria natureza e é justamente o que confere a separação ontológica entre o homem e ela.
Esses mitos são onipresentes, recentemente chegou aos
cinemas Oppenheimer, a biografia do cientista considerado o
pai da bomba atômica. A obra que é até agora talvez o melhor filme de
Christopher Nolan, se envereda pelas esferas científica, política e
principalmente ética, onde o mito de Pandora é mais uma vez
revivido, quando os cientistas precisam pesar na balança moral até onde
vai a fronteira do conhecimento e as consequências do que isso pode causar.
De todos os filmes do diretor esse é talvez o que
tenha mais facetas: consegue mostrar os embates científicos e o desenvolvimento
de uma nova ciência, tecer a narrativa política por de trás de todo o processo,
uma força mais complexa que a própria física quântica e consegue nos minutos
que antecedem o teste da bomba, criar um dos melhores ambientes de expectativa
e tensão do cinema nos últimos anos. Assim como o clímax se condensa numa nuvem
em forma de cogumelo, toda a trama se condensa em seu ator principal: o
excêntrico J. Robert Oppenheimer, personagem que com o desenvolver da narrativa
atinge um arquétipo divino: monotônico, poderoso e sem poder nenhum sobre a
própria criação... daí então vem a queda!
A pressão por desenvolver uma arma antes de seus
inimigos é persuasiva, mas não tanto quanto a dúvida ancestral a respeito de
tudo o que existe. Essa "indagação" pelo oculto, intrínseca à
natureza humana é talvez a pedra fundamental de todos esses mitos e
tal ânsia pelo conhecimento provavelmente foi o pesadelo de gerações
de conservadores em todos os momentos da existência humana. Eu posso ver os
primeiros Homo sapiens debatendo entre si sobre o uso ou não
do fogo e quanto sangue foi derramado em seu nome. As mitologias estão
repletas de artefatos proibidos e no âmago de todos eles está essa
"indagação" fundamental!
Um livro recente que trata de uma maneira muito
interessante esse tema ainda tão moderno, é Quando
Deixamos de Entender o Mundo, do chileno Benjamin Labatut. São cinco microbiografias sobre cientistas do século XX, trazendo à
tona a insanidade que suas descobertas lhes causaram. Embora os
contos acompanhem o desenvolvimento e o desdobramento da pesquisa em si, o
verdadeiro foco é no impacto pessoal que as descobertas causam. Mais
humanista do que científico, é um livro de anseios filosóficos, trilhar o
caminho do conhecimento pode ser traumático, a calmaria da ignorância é muitas
vezes mais tentadora do que um mar revolto de novas descobertas. Labatut mostra
como essas grandes personalidades movidas por uma busca irrepreensível pela
verdade, combateram paradigmas, mudaram o mundo e quanta angústia receberam
como pagamento. Num dos contos, Karl Schwarzschild que elucida as
equações de Einsten e descobre que em certas ocasiões o próprio espaço e tempo
colapsam, enlouquece e se indaga se existiria limite para o
conhecimento humano, um ponto sem volta para o que poderíamos saber: sua
resposta viria alguns anos depois no formato de nuvens de cogumelo!
"A teoria produz um bom resultado, mas dificilmente nos aproxima do
segredo do Criador. Estou, em todos os casos, convencido de que Ele não
joga dados." famosa frase de Albert Einstein, aparece tanto no filme
de Nolan como no livro de Labatut. Originalmente foi dita como uma resposta à
física quântica, que em contraste ao pensamento realista de Einstein apostava
na incerteza para descrever a natureza. Sair de anos de avanços sistemáticos,
de efeitos e causas bem definidos para um mundo onde tudo é expresso em forma
de probabilidades vagas e nada é o que parece, foi um choque para o próprio
Einsten que anos atrás tinha colapsado com a própria noção de um espaço euclidiano estático. Esse momento é retratado no livro de Labatut, que conta sobre
o Congresso de Solvay de 1927, num dos melhores contos do livro.
Esse choque de realidade que a física sofreu é muito parecido com a própria crise do pensamento atual, onde o alto fluxo de informação criou a era das pós verdades e milhares de narrativas surgiram para "explicar" o mundo. Tema favorito de Dostoievski e da obra de Nietzsche o abandono da realidade como ela é por diversas realidades, por isso estamos no mais niilista de todos os tempos. 'Se Deus não existe, tudo é permitido" famosa citação de Irmãos Karamazov refletem esse pensamento. A morte de deus, é a morte de uma narrativa coesa e o que surge em seu lugar é uma realidade fluída o bastante para colapsar em si mesma.
Alberto Mussa discute em seu livro, que os mitos sobre o fogo trazem em si mesmos a própria noção dos tabus. Os tabus estão presentes desde o início dos tempos e estabelecem um limite entre o permitido, mas mais do que isso, estabelecem um limite entre o que se sabe. Um tabu normalmente vem de uma proibição metafísica, que se alicerça justamente na ausência de um conhecimento (um tabu é diferente de uma proibição legislativa). A busca pelo conhecimento é o maior de todos os tabus, está expresso na forma de lendas (como os mitos de Pandora e Eva), de maldições, de incerteza e até os cientistas tem o péssimo hábito de transformar seus paradigmas em tabus.
Oppenheimer e Quando Deixamos de Entender o Mundo contam um pouco dessa história, não enaltecem a conquista científica, a vitória da razão sobre a ignorância mas tão pouco nos entregam uma lição de moral, são obras que versam sobre a violação de certos tabus e da queda que envolve isso. Vale ressaltar, que não estaríamos aqui senão fosse o fogo e todos contos sobre esses tabus dão origem a humanidade como ela é, com suas maravilhas e suas merdas. Fica a indagação, todos esses cientistas retratados nas duas obras caíram e perderam sua sanidade, até que ponto estavam certos? Até que ponto nos é permitido ascender à esfera divina?
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